Como a produtora A24 foi além do cinema e se transformou em “marca cult”
BERLIM – Na indústria global do entretenimento, a A24 virou sinônimo de ousadia, originalidade e diversidade. Fundada em 2012, em Manhattan, por Daniel Katz, David Fenkel e John Hodges, a empresa vem garantindo lugar (de honra) para produções de cinema (e de TV) que, tidas como arriscadas, normalmente, não conseguiam financiamento ou distribuição.
Na atual 74ª edição do Festival de Cinema de Berlim, a ser encerrada no domingo, 25 de fevereiro, a A24 confirmou, mais uma vez, a sua vocação para apostar em projetos audaciosos e diretores comprometidos com sua visão artística.
Sua cartela de filmes apresentada em Potsdamer Platz, no coração da capital alemã, incluiu um drama com um ator de rosto desfigurado, um documentário sobre os malefícios do uso do concreto para o planeta e um thriller de ação sobre uma lésbica fisiculturista com sede de matar, entre outros.
No Oscar 2024, a ser realizado em 10 de março, a produtora americana emplacou duas indicações ao prêmio de melhor filme. Uma delas é Zona de Interesse, do diretor britânico Jonathan Glazer, retrato da família de um comandante nazista, que leva a vida na mais perfeita normalidade, mesmo morando ao lado de um campo de concentração.
Na briga pela mesma estatueta, está Vidas Passadas, da coreana-canadense Celine Song. O romance queridinho do ano conta a história de uma mulher dividida entre um amor de infância e o marido atual.
Não é a primeira vez da A24, no Dolby Theatre, em Los Angeles. Em 2023, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, de Daniel Kwan e Daniel Scheiner, levou sete dos 11 prêmios aos quais concorria, incluindo melhor filme e melhor direção.
Liberdade acima de tudo
É unanimidade entre todos os cineastas que trabalham com a A24: eles têm liberdade para que o filme saia exatamente como imaginaram.
Ninguém, por exemplo, questionou a decisão de Aaron Schimberg, quando ele decidiu escalar Adam Person para A Different Man. O ator inglês, de 39 anos, é portador de neurofibromatose, doença genética caracterizada pelo aparecimento de nódulos volumosos sob a pele do rosto.
“Eu sabia que isso poderia ser considerado uma exploração. Mas, para mim, é importante fazer um filme sobre uma pessoa desfigurada com uma pessoa que tem o problema”, contou o cineasta, no encontro com jornalistas em Berlim, do qual o NeoFeed participou.
Ao levantar questões sobre imagem, percepção e identidade, o filme é um dos candidatos ao Urso de Ouro do festival.
Em conversa com o NeoFeed, o diretor russo Victor Kossakovsky, mais conhecido por Aquarela (2018), lembrou que a A24 o procurou para oferecer financiamento ao seu próximo projeto. “Eles já deram metade do orçamento [de cerca de US$ 3 milhões, no total], mesmo quando eu só tinha uma vaga ideia que o tema do filme seria arquitetura”, disse.
Ao longo do processo, o cineasta mudou o ângulo da obra algumas vezes. “E ninguém da A24 reclamou. Eles simplesmente confiaram em mim”, comentou Kossakovsky. Ele também concorre ao Urso de Ouro, com Achitecton, o documentário sobre a insustentabilidade do uso do concreto.
A A24 também está por trás de Love Lies Bleeding. Exibido em caráter hors concours, é um dos títulos mais impactantes da mostra alemã. A empresa americana já havia produzido o primeiro longa da britânica Rose Glass, Saint Maud, de 2021, uma visão sinistra sobre a fé.
O horror, aliás, foi um dos gêneros que a A24 ajudou a revigorar, com uma abordagem mais artística, psicológica e perturbadora, como em A Bruxa (2015), Hereditário (2018). Midsommar (2019) e Pearl (2022), entre outros.
Sim, imediatamente
Love Lies Bleeding é até difícil de categorizar. Trata-se de um thriller de ação que toma proporções explosivas quando uma fisiculturista, interpretada por Katy O’Brian, resolve se meter nos problemas familiares da namorada, vivida por Kristen Stewart.
“Eu disse ‘sim’ imediatamente”, contou a atriz americana, de 33 anos, revelada na franquia Crepúsculo. “Saint Maud é um dos meus filmes favoritos e, ao me apresentar a proposta de Love Lies Bleeding, Rose me contou que a A24 estava disposta a colocar bastante dinheiro no seu segundo filme, o que é incrível”, comemorou Kristen, em encontro com a imprensa, na Berlinale, referindo-se ao orçamento de quase US$ 100 milhões da nova produção.
Mais dois outros títulos da A24 se destacaram em Berlim. Em I Saw the TV Glow, Jane Schoenbrun resgata com nostalgia a produção teen dos anos 90, enquanto Janet Planet, filme de estreia de Annie Baker, sobre a mudança de percepção de uma adolescente sobre sua mãe.
O poder do marketing digital e do merchandising
Além de produzir e lançar filmes de arte impactantes, a A24 também ficou conhecida por usar o marketing digital com bastante maestria.
A empresa sempre cria um buzz diferente para cada um dos seus títulos nas redes sociais, com foco no público-alvo. A produtora é ainda mais criativa na venda de merchandise de seus filmes.
No site de sua loja, a A24 oferece roupas, acessórios, memorabilia, livros e blu-rays, muitas em collabs com marcas bacaninhas, como as de moda Supreme e Online Ceramics e a de joias J. Hannah.
Em geral, os lançamentos acontecem em edições limitadas, com muitos deles acabando imediatamente, como o poster de Pearl, criado pela artista japonesa Yuko Higuchi.
Outros itens são divertidos, como as luvas de látex com dedos de cachorro-quente, de Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo. Ou o quebra-cabeça no formato de um braço enfaixado, com gesso cor-de-rosa, do filme Lady Bird.
Quando Sofia Copolla lançou seu último longa, no ano passado, a A24 criou kit com máscara para cílios e delineador para “recriar o icônico visual de olho alado dos anos 60 de Priscilla Presley”. Esgotado também.
Avessos a entrevistas, Katz, Fenkel e Hodges criaram muito mais do que um estúdio cinematográfico, uma produtora de filmes de autor e histórias inteligentes e inclusivas. A A24 é hoje uma marca de desejo –um ícone cult.