A economista que sacudiu o Brasil com o jazz
Fazer, em uma ou duas palavras, uma síntese da trajetória profissional de Monique Gardebenrg é uma tarefa fadada a deixar lacunas.
Sua carreira já se estende por mais de quatro décadas e teve início na virada dos anos 1970 para os 1980, quando trabalhou na produção dos shows 1° de Maio, liderados por Chico Buarque, e na turnê do Clube da Esquina 2, de Milton Nascimento.
Da experiência, nasceu a Dueto Produções, fundada ao lado da irmã Sylvia (1960-1998), quando as duas tinham respectivamente 24 anos e 23 anos. Com a Dueto, Monique promoveu eventos culturais emblemáticos, como o Carlton Dance, festival de dança que teve nove edições.
A cria mais famosa da empreitada, porém, é o Free Jazz, realizado de 1985 a 2001, rebatizado como TIM Festival, de 2003 a 2008, e retomado neste ano como C6 Fest, que acontecerá de 19 a 21 de maio, dentro e fora do Auditório Ibirapuera, em São Paulo, e em uma versão reduzida, no Vivo Rio, na capital fluminense.
Serão mais de 20 atrações, em grande parte inéditas em palcos brasileiros, a exemplo da cantora de jazz americana Samara Joy, ganhadora do Grammy 2023 de artista revelação.
O elenco de artistas, selecionados por curadores como Hermano Vianna, Ronaldo Lemos e Felipe Hirsch, terá ainda veteranos, de Caetano Veloso à banda alemã Kraftwerk, e jovens artistas, como o multi-instrumentista Tim Bernardes, que fará um show em homenagem a Gal Costa.
Monique Gardenberg nasceu em Salvador, filha de mãe baiana e pai judeu polonês. Aos três anos, mudou-se com a família para Santos, no litoral paulista, onde morou por dez anos. Voltou à capital baiana aos 13 anos e, aos 16 anos, foi para o Rio de Janeiro.
“Tudo motivado pelas reviravoltas que nossas vidas davam toda vez que nosso pai perdia tudo no jogo e fugia das cidades. Ele era uma figura dostoievskiana e um pai muito carinhoso, vítima direta do antissemitismo e do Holocausto, dos 2 anos aos 13 anos de idade”, conta Monique, ao NeoFeed.
No Rio de Janeiro, Monique estudou economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, participou do Movimento Estudantil e chegou a ser diretora cultural do Centro Acadêmico da instituição.
Foi após concluir o curso que teve as primeiras experiências nas produções dos shows de artistas brasileiros então já consagrados. “A vida atropelou a minha carreira de economista e eu deixei me levar.”
De produtora, Monique tornou-se, ela mesma, uma artista, multifacetada. No cinema, dirigiu, entre outros, “Benjamin” (2003), adaptação do livro homônimo de Chico Buarque, e “Ó pai, ó!” (2007), com Lázaro Ramos e Wagner Moura no elenco.
No teatro, teve na montagem de “Os sete afluentes do Rio Ota” (2002), peça de Robert Lepage com duração de cinco horas, um de seus maiores sucessos, com cinco indicações ao Prêmio Shell.
A volta do seu festival de música, que trouxe ao Brasil pela primeira vez nomes como Nina Simone e Stevie Wonder, coincide com a retomada da cultura no Brasil.
Para Monique, os últimos quatros anos foram “devastadores” para o setor. “Ninguém ainda se recuperou inteiramente”, ressalta. Leia a seguir entrevista concedida ao NeoFeed:
Como se deu a criação do Free Jazz, em 1985?
Ao retornar de uma turnê com Djavan pelos principais festivais do mundo, como o Montreux Festival, na Suíça, e o Kool Jazz, em Nova York, entre outros, Sylvinha e eu percebemos que o Brasil tinha uma carência de um festival que nos revelasse os talentos que brotavam e que demorariam décadas para chegar aqui. Paulinho Albuquerque, meu mentor, diretor dos shows de Djavan e grande conhecedor de jazz, e Zé Nogueira, saxofonista da banda Sururu de Capote, deram a maior força, e fomos então pedir a benção e a ajuda de Zuza Homem de Mello na curadoria do festival.
O TIM Festival teve sua última edição em 2008. Você vinha tentando reerguer o festival desde então?
Tentamos por alguns anos. Logo depois que o comando da TIM mudou, e a verba de patrocínio passou a ser destinada ao Blue Man Group. Mas não encontramos um parceiro com a mesma paixão. Imagino que por mil razões, desde o investimento necessário até o perfil mais sofisticado e segmentado do festival. E a Alexandra Pain [head de marketing do c6 bank] nos procurou, queria trazer o festival de volta. Ela era uma fã do Free Jazz e sentia que faltava algo assim no cenário dos festivais no Brasil.
Duas coisas chamam a atenção nos line-ups do C6 Fest: é um festival “diaspórico”, com artistas que vivem e atuam em grandes centros urbanos nos EUA e na Europa, mas têm suas origens no continente africano, no Irã e na Armênia, por exemplo. E também a grande presença de mulheres. Essa diversidade foi um recorte pretendido?
O Festival já possuía essa visão, sempre foi um radar do que acontecia de relevante pelo mundo. Sem distinção, o único critério sempre foi e continua sendo a qualidade musical.
Você sempre esteve envolvida em projetos distintos na área cultural, do marcante “Os sete afluentes do Rio Ota” e do Carlton Dance, à adaptação de “Benjamin” para o cinema, entre outros projetos. O que está em curso no momento?
Além do C6Fest, a Dueto está produzindo atualmente a exposição “Imagine Picasso”, que estreou no dia 9 de março no Shopping Morumbi. Queremos trazer o festival de dança de volta, estamos atrás de patrocínio no momento. Acima de tudo, quero aguardar a nova Lei Rouanet e ajudar o Zé Celso Martinez Corrêa a tirar do papel sua admirável adaptação para “A queda do céu”, de Davi Kopenawa, cuja palavra precisa ser levada adiante. Mais do que nunca.
Como a pandemia afetou os projetos da Dueto?
Tenho muita dificuldade de ligar a pandemia a algum aprendizado. Resisto à ideia de aprender a partir do sofrimento. Perdi pessoas muito queridas. Perdemos Paulo Gustavo, Aldir Blanc, Eduardo Galvão, e tantos outros. Nosso caso foi ainda mais trágico porque ainda por cima estávamos sob um governo que insistia em minimizar ou negar a gravidade do vírus. E foi com emoção que vi, na ausência do Estado, a sociedade civil se organizar para dar amparo à população desassistida. Foi traumático e quase fatal para a Dueto, mas temos esse talento para o renascimento. Gosto de pensar que Sylvinha olha por nós lá de cima…
Há algum novo projeto que fuja das áreas em que já atuou?
Tenho muita vontade de trazer de volta o conceito que criamos para o Carlton Arts, evento premiado pela APCA [Associação Paulista de Críticos de Arte], um evento que se organiza a partir de um tema e se desdobra para diversas disciplinas. No mais, quero muito voltar a filmar!! Felizmente, o cinema vai voltar depois de quatro anos de total asfixia, milimetricamente provocada no setor.
Já foi mais fácil empreender em cultura no país?
É um eterno desafio. As leis mudam. Antes, o dinheiro mudava muito também. Pegamos todos os tipos de moeda. A conta do Carlton Dance, com patrocínio e bilheterias, foi confiscada pelo Plano Collor, por exemplo. Uma loucura! Não é para qualquer um. Precisa ter coragem. Precisa ter 24 anos de idade…
Diria que, atualmente, as empresas estão buscando dar mais centralidade à cultura e ao entretenimento em seus projetos proprietários?
Não consigo falar por eles. Mas sigo criando obras ou eventos que façam sentido, que tragam alguma contribuição cultural. Quando esse desejo nosso encontra um patrocinador mais inquieto, igualmente sensível, nasce o C6 Fest.